Alguns poucos morcegos

Alguns poucos morcegos

Do que se vê da minha janela, é nada. O breu da madrugada não me deixa ver somente além do que eu já sei: uma janela de vizinho anônimo , carros preguiçosamente pelos cantos, os ralos talhos de grama nascidos por entre pedras que eu sei e sempre soube que lá estiveram e vão estar, porque é assim que é; como além do que sei, também não me deixa ver aquilo que eu não sei: morcegos que voam levando alguns poucos insones pensamentos. Que cantam alertando uns aos outros “peguei algum que valha a pena por este pernoite”. Meu sonho era que um desses voadores cantarolassem um dos muitos meus para os outros . Além do breu, o que diferencia agora da manhã é o ar, gelado e extremamente solitário. Parece que, no mesmo ar que voam os pensamentos noturnos, silenciosos e soturnos, voa nas suas mais variadas densidades, a solidão. Essa solidão que eu daqui, troco com você daí ,pelos ares de suspense que só a madrugada de cidade tem. Nem um vento vem essa hora para varrer esse sentimento para um outro. Solidão que emana intuitivamente de todos os acordados e que fazem esse envio e recepção de pensamentos e da mesma solidão. O ar gelado me convida para me afastar. Dou dois tímidos passos para trás adentro, e , sem a pressa que a noite nos inspira, tranco a janela. Solidão por solidão, talvez já baste a minha. Sei o que tem no quarto, apesar das luzes apagadas e o ambiente aqui ser exatamente um retrato do lá de fora, sem tirar nem por. Morcegos , pensamentos, ar gelado, somente solidão. Somente a minha solidão nesse quarto. Minha iris, já tolhida de esperanças pela vida, tenta se adaptar conforme a escuridão, e só a título de confirmação, confirmo e sento na minha escrivaninha. Passo os dedos lentamente pelos sulcos que o tempo e o sonho meu talharam. Eu amo você, eu a amo, eu e você, você e eu são as únicas palavras marcadas à faca que fazem sentido nesse velho móvel em meio a muitas poesias desencontradas. Queria fazer sonetos. Sonetos pra você. Lembro rindo. Olho a volta e choro. Meus olhos fechados então me são mais alegres e quando os abro já estou deslizando as costas maciamente pelas paredes. O que se vê nelas, não fogem muito ao padrão do que se pode ver na escrivaninha e em todos os móveis da casa. Pinturas de amor e retratos teus e meus que, já foram mais coloridos. Se saísse do quarto, coisa que tirando as necessidades, eu raramente fazia, saberia que os único sinais de vida da casa, estavam naquele quarto, por mais fúnebre que ele estivesse, convidativo à solidão, com um céu negro e nublado de pensamentos e mais alguns poucos amigos morcegos, os quais se viam no direito de ali entrar e fazer morada, que essa hora da noite , por aqui cantarolavam já belíssimas e carregadas canções. Minhas mãos seguem o corpo nesse rumo até o chão, até que, no rodapé encontro uma janela. Dessa eu não sabia, nunca estivera lá, e o breu, finalmente me fizera ver algo novo. O material da janela, ou janelinha, rigorosamente era o mesmo dos móveis: uma madeira envelhecida e cheio de sulcos propositais e desconexos feitos por mim, parecia. Nunca antes tinha mexido ali. Resolvi abrir. Descobri que a janela dava pra lugar algum. Na verdade parecia uma caixa preta e oca. Provavelmente um anexo do vazio do meu quarto. Agora, o corpo todo mal distribuído por cima de si próprio, já estava ao chão , gélido como o ar. Como tudo que é sem vida. Como tudo que é sem você aqui. Comecei a me ver diferente. Meus pés nunca foram tão gordos e assim como eu, estavam engordando mais e mais. Não me reconhecia mais. Não que fisicamente. Não tinha nem espelho tampouco luz pra visualizar esse rosto envergonhado por agora. A única medida de tempo que tinha era o comprimento da barba. Não queria brindar à luz do sol nunca mais. Aquele brilho me lembrara que esse quarto , hoje vazio, já tinha sido, outrora por estes raios reluzentes e brilhosos, que iluminavam e coloriam seus longos cabelos repousados trabalhosamente pelo acaso ao chão, palco das nossas danças, andanças em círculos, cânticos, mãos hora dadas, hora batendo palmas. E o som? Ah, o som era maravilhoso. Ecoava pela casa toda mostrando que nós éramos felizes. Muitas vezes aqui, pés escorados na janela até doer, deixávamos o sol participar como coadjuvante do nosso momento. Eu , como muitos, jurei o que não podia cumprir, jurei que seria eterno. Hoje , deitado aqui, com a sorte que os cachos que faço na barba me fazem esquecer, por alguns minutos felizes, que um dia ,quem estava deitado do meu lado, era você. E você ,onde está? No anexo do meu quarto, por dentro daquela janelinha, muito provavelmente. Já era em tempo de cairmos na real e notar que aquela decisão não fizera bem nem à mim e nem à você. O tempo sozinho me mostrara que, apesar de muito indesejável, a solidão é o mais fiel dos sentimentos.

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