607 - Negreiro

607 - Negreiro

"Mambo number five" é o nome da música. Além de perguntar qual o nome e por quê ele ainda não trocou esse depertador, perguntara se tinha ainda 6,7 minutinhos até ter que levantar da cama norteando a via crucis cotidiana: banheiro,dentes,água gelada,tchau mãe, tchau pai,portão empenado e, quando sem sorte, dar de cara com outros vizinhos morimbundos que, como ele, acordam antes do galo para trabalhar e afins.
Pronto. Como é doce viver. O ponto? Cheio. Nem 1/5 do quão cheio estará o ônibus. Seja aquilo um transporte público ou um navio negreiro.
Sinal. O motorista,devidamente trajado com óculos escuros na cabeça, calça levantada até o joelho e um papelão servindo de quebra-vento, parece fazer questão de nunca parar em frente ou próximo ao passageiro.Nem sempre é o mesmo.

O nome do martírio? 607.

Entra no ônibus e,se não fosse calejado e velho de guerra esperaria achar um lugar preterido. Como não o é, sabe ser mais fácil ganhar na loteria do que chegar na roleta sem provar do suor de sofredores que começaram a morrer alguns pontos antes.
Passa pela roleta e toda a paciência de monje, agora, não passa de uma longínqua lembrança. Nem confere o troco.
Primeiro obstáculo: algum malandro que insiste em ficar na roleta. O senhor deixa eu passar? Meio dormido, meio acordado e meio muito bravo, o homem de 3 metades e que de senhor respeitoso não tem nada só dá passagem conforme o balanço do negreiro. Perddão, 607.
Segundo obstáculo: a trabalhadora. A senhora, alta, amorenada e com uma enorme bolsa que carrega sabe-lá-Deus-o-quê tenta dar passagem para o jovem estudante não sem antes pensar -Esse é daqueles que quando olham aquelas velhinhas forjam estar dormindo, não que as velhinhas não sejam chatas, muito pelo contrário mas...A gentileza de ceder um espaço pro garoto nem que seja respirar é tanto vã quanto nula.
Aliás, o ar aqui,sujo e fétido, é rarefeito.Nem isso consegue ser. Por bem antes o fosse.A mistura é de oxigênio, espirro, amônia, enxofre e...Leite de rosas???
Muito dessa culpa se dá ao terceiro gladiador a ser batido. A arena fede, talvez, eu disse:talvez, por causa desse proletariado. Beija-flor convicto, olhos avermelhados não enganam de que bebeu até tarde ontem. O bigode lembra uma cortina negra e no suvaco, ah se aquele suvaco falasse...Como ele não fala,fede. E muito.
Nem a tentativa de alguma pasta milagrosa caseira,casca de banana, limão, quiçá o leite de rosas ,que ,em menos de dez minutos de sair de casa já escorre, contiveram o ímpeto e a vocação ao fedor. Tá explicado o misterioso fedor da arena.
As mãos apalpam o ferro outrora apalpados por zilhares de vítimas como ele. Árdua tarefa é achar algum canto. Se apoia no vizinho da direita,no da esquerda,no banco, e nem uma mísera alma se oferece pra levar a mochila,vazia e de jeans, rasgada do nosso personagem.
Pela janela os mesmos lugares, as mesmas pixações. Pera aí;aquela cor de grade era diferente...Não, não era; não rola. Não consegue mais se enganar. O ponto de descida está longe. O local que ele atesta sua bravura é só no outro bairro, mas infelizmente, nem desfrutou de todo o sofrer e já tem que ir embora. É retomada a odisséia : passa pelo primeiro,segundo, por dentro do terceiro, espera a moça levantar(puxa vida, se ela tivesse levantado antes tinha sentado...)o quarto é passado. O quinto, parece ser primo do beija-flor. Pelo menos carregam no suvaco o mesmo leite de rosas e na retaguarda o aroma do inferno. Tenta, sufocado, a ultrapassagem. Como? Não tem como.
O ônibus dá uma freada brusca, pra não perder o costume. Ninguém cai pelo simples fato de não ter como. A porta abre. A esperança de ter esperança, de um mundo melhor existe. A saudade do cheiro da rua, do caminhao que arrasa com o ambiente existe. A lembrança do frio de 32 gruas que remete à bangu também existe. Há luz no fim do túnel. Há tmabém o último guardião da liberdade: o estudande de colégio público que teima em ficar na porta.
Ele finge que sai,não-sai,sai,não-sai,sai e não saiu! O motorista coloca o negreiro em movimento e o gemido do sofredor é ouvido: "ô piloto". E o piloto? O piloto inexplicavelmente pára, reabre a porta. Ele sai. Respira. Olha para um lado. O outro. A escola é em frente ao ponto. O ar de vencedor é notável; afinal, veio de 607 pela manhã. Entra na porta da escola e finge esquecer que as notas são baixíssimas,esquecer o trabalho que valia dez e ele não fez, esquecer que, fatalmente vai figurar nas recuperações,e a cueca. A cueca? A cueca tá apertada. Igual o 607.



Um alento à Leandro Leleco.

Um comentário:

  1. MUITO bom esse post. e, por sinal, esse personagem me lembra alguém...

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