janeiro 2011

Populiano e Erudita

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Populiano Silva acordava de calor sempre às dez da manhã, descia e tomava sua média com uma leve preguiça, de dar inveja em qualquer gato, na padaria que ficava na frente de sua casa. Era uma vida de monge para alguns: a contemplação do nada. Fazia de muito bom grado, o que não significa qualidade, todos os seus ralos e raros afazeres para que, no cair do sereno, vestisse seu impecável blusão de linho e com uma flor na lapela de seu paletó, sandália nos pés e um sorriso convidativo nos lábios fosse encontrar com sua paixão, no centro da cidade: Erudita França. Jovem, moça da cidade, estudante fervorosa tal qual sua religiosidade, promessa de um bom futuro da família desiludida e desapontada em seus lápis que escreviam o sonho próprio. Ali trocariam carícias, ouviriam e descreriam de promessas de amor eterno, sempre iluminados pela lua longínqua porém íntima de todos os amantes; dançariam um pouco, no intervalo dos “amassos” à sombra da luz, o chorinho bem tocado e bem sentido — releituras fiéis de Ernesto Nazareth, Waldir Azevedo, Jacob do Bandolin, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga (será o Rio a antítese do moderno, ou seria a vida um museu de grandes novidades, o passado sempre parece estar à frente) — comeriam algum frango à passarinho feito de leve, sem nenhum rigor. Na volta à Zona Norte, num dos milhares de ônibus que cortam a  cidade enquanto ela tenta nos convencer de que dorme, diriam um para o outro ja t’aime após reclamarem que a passagem estava caríssima. No dia seguinte, Populiano veria sua fézinha, seu jogo do bicho, iria ler sobre o botafogo e reclamar da escalação, e claro, lembrar com uma mixórdia de ternura e libido de sua Erudita. Seria essa uma vida clássica? Seria isso uma vida popular? Os dois são excludentes entre si?

Terminou esta semana o festival de jazz na sala Baden Powell, Copacabana, um festival de bom gosto e impor~tância ímpar para quem acha a boa música palatável aos ouvidos, sendo isso possível. Nele havia grandes nomes , assim como alguns lançamentos. No dia 26, André Vasconcelos, considerado hoje uma das referências do contrabaixo brasileiro, lançou o CD Dois; já no dia 27, o saxofonista Thiago Ferté lançou seu primeiro CD, Underground Scene, com composições próprias. Tirando as aparições internacionais e sem contar o a esplêndida e bela  Taryn Szpilman num tributo à Billie Holiday. E é sobre Marcel Powell em que habita o âmago do texto. Powell que me perdoe e me permita. Filho de um dos maiores violonistas de todos os tempos, Baden Powell parceiro de incontáveis gênios, sobrinho de João de Aquino, apesar de ter alguma, não tem a menor visibilidade midiática que deveria de ter, ou haveria de ter se fosse de outro país( será?). Marcel é violonista clássico mas, afinal, já temos claras definições do que é clássico, ou erudito ou popular no Brasil no sentido de aceitação pública e fama? Pixinguinha? Tom Jobim? Cartola? Villa Lobos? Quiçá Flamengo e Vasco? Do que realmente gostamos e porque gostamos?

Recebo informações por meio de seu filho e também violonista, Gabriel de Aquino, de que,  João de Aquino, apesar de não ir à França por razões profissionais há anos, continua recebendo prêmios por decorrência de seu trabalho instrumental por lá. Aqui indagaríamos : João-Quem? Parecemos dar indícios de viver uma bipolaridade quando se trata de gosto artístico; exaltamos  dos mais gênios aos mais corriqueiros, depreciamos os mais sublimes, ora entendemos, ora não os incompreensíveis.

Numa noite de verão como a de hoje, Populiano deitou-se com Erudita e tiveram um lindo, porém estranho filho chamado Brasil